Ninguém quer sua emissora exposta a uma opinião pública que condene veementemente o aborto, mas também, nada de crianças de "sangue ruim" poluindo as sólidas famílias novelísticas. A solução é uma escada aqui, um acidente de carro ali, uma queda, um tropeço, qualquer coisa que justifique um aborto espontâneo.
Isso ficou muito claro na novela "Insensato Coração", em dois momentos. O primeiro foi com Irene, personagem de Fernanda Paes Leme, seu bebê era altamente indesejado, já que atrapalhava o romance de Pedro e Marina. Convenientemente, Irene é atropelada pelo vilão, Léo, e morre junto com o bebê. Problema resolvido!
Outro caso, bem pior, aliás, foi o de Cecília e Vinícius. Pra começar, Vinícius é um filho bastardo, super mau caráter, que espanca gays por
diversão. Completamente apaixonado, ele embebeda Cecília, a leva pra cama inconsciente e transa com ela sem camisinha. Quando descobre a gravidez, a irmã da moça, Leila, sugere um aborto, que Cecília nega imediatamente, dizendo que "jamais seria capaz de fazer isso com seu filho". Em vez disso ela opta pela segunda opção mais óbvia, o casamento, claro! Só que na porta da igreja, Vinícius é preso por ter assassinado um homossexual, então a esperta Cecília vai visitá-lo, fala para ele ficar longe do bebê dela e, tchanam, ele a empurra e ela magicamente perde o filho! Afinal, como é que ela ia se arriscar a ter um filho de um bastardo, super mau caráter, que espanca gays por diversão e ainda está no meio de seu romance com o rico Rafael? Jamais, né?
O que me surpreende é que a adoção nunca é nem sugerida. Aliás, na maior parte das novelas, a questão da adoção só é abordada quando motivação para o adotado procurar seus "pais verdadeiros". Sim, nas novelas os laços de sangue ainda aparecem quase como garantia para uma família feliz, e lá vamos nós, pisando num assunto que já é pouco incentivado por aqui. Agora deu para aparecer a questão do sangue até quando se fala de inseminação artificial, palavras como "mãe verdadeira", "pai verdadeiro", destituindo completamente a força dos laços afetivos.
A gente nem ouve falar em coisas como "parto anônimo", por exemplo, que é quando a mãe tem o direito de permanecer incógnita durante todo o processo do parto e entregar o filho para a adoção já no hospital, depois de 30 dias de nascido (tempo determinado para a criança ser reclamada por algum parente), aumentando em muito as chances do bebê ser adotado, já que a maior parte dos órfãos no Brasil não são adotados por já terem "passado da idade". Acho que o parto anônimo ainda não é nem legalizado por aqui, o que é estranho, se formos considerar o alto nível de crianças abandonadas que vemos nos jornais.
Isso sim é interessante, não é? Não temos uma política decente de prevenção de gravidez, sério, não temos! Até porque, lá vai a igreja proibir o anticoncepcional e a camisinha, não é? O aborto também não é legalizado. As políticas de adoção são complicadas e o parto anônimo é pouco discutido. Ainda temos a TV nos empurrando noções como "sangue do meu sangue". No fim das contas, realmente, só sobrou pra coitada da Cecília a opção de casar e/ou convenientemente perder a criança.
Comparo essas situações com o caso da Quinn Fabray (de Glee) ou da Juno (do filme "Juno). As duas adolescentes americanas tiveram gravidezes indesejadas e optaram por entregar os bebês para a adoção. Isso não quer dizer que foi fácil, não quer dizer que não teve sofrimento ou hesitação, as duas quase desistiram várias vezes e, no caso da Quinn, até rolou uma depressão pós-parto e tudo. Acho que tem de haver coragem, sim, por vários motivos. Da mesma forma que deve haver coragem para abortar, da mesma forma que deve haver coragem para escolher criar uma criança, da mesma forma que deve haver coragem para, em casos mais extremos, casar com alguém que você não gosta só para criar o filho. Coragem a gente é obrigada a ter, mas e quanto às opções?
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